É um cheiro
intoxicante, na verdade. O calor vai subindo pela nuca, abrindo os poros da
pele. Dilatados, os poros exalam aquele cheiro, uma mistura de grama, açúcar
queimado e bolinho de chuva. É aquele cheiro de ser gente, de estar tão
irredutivelmente preso a si mesmo que seu corpo convulsiona em suor. Cheiro de
creolina. Escorre pelo pescoço e desce pelos braços, lembrando que mesmo à
noite os corpos suam. Cheiro de gente. O mormaço se mistura com esse teu
cheiro, que, agora, deixa o quarto impregnado. E não adianta: há de me
acompanhar até a hora de dormir. Deito a cabeça no travesseiro e lentamente ele
suga todo esse meu cheiro pra dentro dele. Só assim, sem perceber, que meu
corpo se esquece de me lembrar que eu sou eu. Ou você? Não importa, pois fico
ali preso no tecido do travesseiro quente, e meu corpo nada mais é que um peso
em cima do colchão. Estou lá dentro da fronha, dos lençóis, das molas. Cheiro
de sono. Todos os sonhos guardados nos espaços vazios entre um tufo de tecido e
outro. Desejos, amores, gritos e temores presos na malha do algodão. Cheiro de sonho.
Mas logo ali, 06:05 da manhã, meu travesseiro me vomita pra dentro do meu
corpo. Acordo sentindo os pés pesados: esse sabor de ser si mesmo demora pra se
espalhar de volta pros braços, pernas, tronco. E o calor não ajuda. Cheiro de
remela. Lentamente, essa presença vai subindo os joelhos, coxas, umbigo,
pescoço. E, então, logo que eu sou eu de novo. A minha presença me inebria, e é
por isso que sou indeciso: a cada dia que acordo, sou outro. Cada respiração é
uma lembrança de que meu corpo me esvazia e me preenche de mim em um fluxo
contínuo de ser, não-ser e vir-a-ser eu mesmo. Ou você? Cheiro de gente. É tudo
culpa do travesseiro, na verdade. Esse meu cheiro some uma vez que deito na
cama, e o perigo tóxico do cheiro do suor fica todo escondido ali, debaixo da
coberta quente. Não porque esteja calor, mas porque o frio me obriga a escarafunchar
ainda mais no travesseiro. Cheiro de penumbra. Mas onde estou mesmo? Não sou
você, isso não é possível. Mas também não sou eu. E, se não sou o travesseiro,
quem somos? Cheiro de gente que não sabe dizer quem é, cheiro de creolina,
cheiro de suor, cheiro de banho, cheiro de sono, sonho, cheiro de tesão. É
tóxico: cheiro de gente é sempre tóxico. Mas cabe perguntar: quem é mesmo que
se intoxica? Quem é que morre? Não pode ser eu, já lhe disse, e também não pode
ser você. E, se não somos o travesseiro, então somos tudo isso. Somos cheiro.
Não pode ser tóxico aquilo que mata quem nunca existiu. Não há como o perfume nos
matar se nunca fomos nós. Afinal, somos o que além de cheiro?
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