fevereiro 05, 2015

...

- Percebi que me distanciei do meu amar.
- Você quer dizer do seu amor?
- Não, meu bem. Me distanciei do meu amar. Meu amor repousa doce e calmo ao meu lado, mas meu coração se põe mais e mais triste conforme passam as estações.
- Não há dor maior do que a de se abandonar.
- É por isso que veio me visitar? Pra levar-me em tuas asas? Porque me abandonei?
- ...
- Pouco me importa, na verdade. Oco, meu corpo já vaga morto pelas ruas daqui. Perambulo à noite e não consigo dormir; não por falta de sono, mas porque já não sonho mais.
- Como pode um homem sonhar sem o tecido dos amores para recobrir-lhe a alma?
- Estou desnudo há tempos, e a malha que uma vez me aqueceu hoje faço de pano de chão. 
- Você tem de se haver com isso.
- Acho estranho quando a gente tem que "se haver" com alguma coisa. É um termo estranho. Não é prestar contas, não é se houve, se há, se haverá. "Se haver" com uma situação, um problema, uma pessoa, um amor, desamor... Que é isso? É mais do que só dar conta do problema, aguentar, solucionar um problema. Não. Quem inventou o tal de "se haver" sabia muito bem que é um jeito de se colocar pra fora do limite da própria cabeça, como quando tiramos o recheio da abóbora. Não sei nem conjugar essa merda. Eu me havo com as coisas? Tenho que me haver? Me haverei com isso ou com aquilo?
- Pouco importa a sintaxe, caro.
- Pouco importa sim, mas não pela sintaxe, mas porque essa discussão não me interessa. Você não me interessa.
- O que te interessa?
- Nada. Nem você, nem os cigarros ou Ela. Nada.
Diante desse comentário, a Morte se levantou sem pressa, tomando cuidado de não deixar seu manto arrastar pelo chão. O homem, incrédulo, questionou.
- Oras, não me leva porque?
A Morte, desinteressada, continuou caminhando até a porta, e só se deteve quando já estava no batente, um dos pés para fora do quarto. Parou ali por um momento, esperando alguma súplica, mas o homem nada mais falou. Enojada, saiu em busca de alguém mais vivo.
Odiava quem lhe roubava a chance de matar sem em troca oferecer vida de verdade.

fevereiro 03, 2015

?

A pergunta só é válida quando leva pra outras perguntas. Uma pergunta por si só não é nada; uma pergunta por si só não precisa ser respondida. Uma pergunta somente cumpre seu papel quando coloca a gente em movimento, quando faz a gente questionar outras coisas que não só aquelas que a pergunta coloca. Pergunta só vale quando faz a gente ir pra outros cantos da casa, quando coloca a gente de ponta cabeça pra ver o mundo de cabeça pra baixo - ou de baixo pra cima? Pergunta o que quiser vai, desde que você (realmente) não saiba a resposta. As perguntas da humanidade são justamente as que não sabemos responder mas, para além disso, são também as que nos colocam pra pensar sobre outras coisas que não só a possível resposta da pergunta, entende? Questionar-se sobre a razão da vida ou do universo, mais do que buscar respostas, é fazer a gente ir ao encontro do nosso lugar no nosso mundo, no nosso universo, meu e teu e nosso e de todo mundo. Não sei a razão do universo, mas sei que cheiro tem chuva de verão e que gosto tem bolo no café da tarde. Me chame de louco, mas me faça uma pergunta sem resposta.

Perguntar o que é o amor, por exemplo, é inútil, é raso, é matemático. Me pergunta o que sinto quando olho pras crianças, quando olho pra's histórias que me contam sobre o mundo e sobre as histórias que me conto sobre mim. Me pergunte de minhas amantes, não do meu amor. O amor não me pergunta nada, ele é pura abstração, conceito. Me pergunte do sangue nas veias, me pergunta sobre as perguntas que já me fiz. As grandes perguntas sobre as quimeras do mundo, sobre a dor e sobre o passado, sobre o gosto de estrelas e o cheiro do centro da terra, sobre a vida dos homens e sobre o futuro das sereias... essas sim são as perguntas que nos fazem ir pr'outro lugar. 

janeiro 19, 2015

Liabilities I

We're all becoming liabilities. To the world, to others, to ourselves. Our challenge is to bear the burden of being oneself, even with all the scrapes and bruises that makes us part of what we are. Life is not 'bout creating a safe environment, but surviving the very fact that we're alive.

outubro 16, 2014

Certeza

- E a pior coisa do mundo?
- A certeza.
- Achei que você ia falar que era a morte.
- ...e não é a morte a única certeza do mundo e, ao mesmo tempo, a pior?
- ...
- ...
- E quanto ao amor?
- Que tem a ver o amor com a certeza?
- Nada.
- ...
- Certeza e amor nada tem a ver um c'outro.
- ...
- O que foi?
- ...então não me amas?
- Te amo, meu amor. Te amo desesperadamente.

Só não tenho certeza disso.

setembro 25, 2014

Amor de Metrô

Tá cheio. 
É a linha azul às 18 horas de um domingo, é de se esperar. 
O empresário do meu lado parece impaciente olhando pro relógio de pulso, e só desvia a atenção pra checar a possível luz no fim do túnel. O vagão se aproxima, lento e descompromissado com a irritação do senhor que, impaciente, suspira. 
E, então, ela chega. Ela se senta, ela fica de pé, quem sabe segura uma criança. Quem é ela? Paixão de metrô, um dos meus prazeres mais platônicos. Quem é ela? Ela é linda porque não é nada demais. Ela é absolutamente cotidiana, ela é linda até a próxima estação. Ou será ainda a próxima? Não sei. Só sei que não sei há quanto tempo a tenho observado, dormindo, lendo, cantarolando baixo, fazendo nada, escrevendo algo, olhando desinteressada para os trilhos do metrô. 
Amor de metrô: dura até a próxima estação. Ou será a próxima? Não sei, mas ela é linda! Linda até a última estação, linda sem explicar, linda entre o Paraíso e a Consolação, linda no espaço de um vagão inteiro. Ela é demasia e suficiência, e ela se levanta, calma e oblíqua, como quem decidiu descer de repente. Mas não desce. Fica no meu trem até a próxima estação. Ou será a próxima? 
Cruzam-se as linhas coloridas do metrô e o vagão range os trilhos ao acelerar descompassado, mas ela nem sabe que já passei da minha estação há tempos. E, sem saber, ela me conduz no trilho do trem pra mais uma estação. Ou será talvez mais uma? Afinal, quem é ela? Ela é linda no vão entre o trem e a plataforma, ela é linda sem esforço e sem saber, e é corriqueira e comum e tola. 
Ela passa pelas catracas, ela senta ali no canto, ela diz algo ao telefone, ela olha, ela dorme, ela suspira, ela se mexe, ela rabisca. Ela desce na próxima estação. Ou será, talvez, na próxima? 
Ela é banal, ela é linda, ela é costumeira. 

Ela basta.

setembro 04, 2014

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Às vezes acho que o tempo só passa pra me lembrar que eu mudei; se eu não mudei, o tempo não passou. Por isso me sinto tão velho; mudei tanto em tão pouco tempo...
Passaram séculos da minha vida em uma só semana.

setembro 01, 2014

Amor Pirata

Veja bem: não é que piratas como eu não se apaixonam. Não é por desencanto, desamor ou descaso; é que por acaso os ventos meus e teus nos sopram pr'outros mares. E de males meu navio já está farto, meu amor. O papagaio no meu ombro só me conta desgraças, e este meu tapa-olho só serve pr'eu ver meias-verdades. Não sei se meu navio afunda com o peso disto tudo, nem sei se chegaremos à próxima cidade a tempo. Só sei que paixão de pirata não é porto, é vento. E me perdoe pelo meu amor torto, e pelo meu coração moleque que não faz nada além de soprar esses ventos. Meus pulmões estão cheios de sal do mar, mal consigo respirar novos ares.

Meu amor é vento, meu amor.

Vento a gente não pega na mão, vento a gente sente.
Vento não pára quando chega aqui ou ali; vento venta. Ventania, vendaval, brisa, maresia, mormaço, sopro, furacão. Tudo o que podes fazer, ao ver meu navio passar ao longe, é respirar. Respira e o vento se encarrega de te trazer aqui pr'mim. 
Respira e a maré te traz pelas ondas feito barco de papel.
Respira e os piratas vão aí te roubar pr'mim.
Respira que te roubo.
Respira que respiro.
Respira-me.

O vento há de te soprar no meu caminho.